De saudade com você- Flávio Carneiro
Eu estava numa viagem de trabalho quando recebi pelo celular uma mensagem de voz gravada pela minha
filha Luísa, na época com 2 anos. Embora goste muito de falar, desta vez Luísa foi bem econômica com as
palavras. Disse apenas: “Papai, estou de saudade com você.” Pronto, sem mais. De início só achei engraçado. Ela
costumava fazer essas trocas. Às vezes eram apenas letras desencontradas. Noutras, uma palavra no lugar de outra
dentro da frase, como me pareceu ser o caso.
Fui fazer o meu trabalho e só à noite, no hotel, me dei conta da pérola que viajava escondida naquela
brevíssima mensagem. Cecília Meireles escreveu que é também delas – as vagarosas saudades – que os dias são
feitos. Mário Quintana definia saudade como aquilo que faz as coisas pararem no tempo. Chico Buarque cantou
que a saudade dói como um barco que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais.
Músicos, poetas, cantores, filósofos, linguistas, intelectuais da mais alta estirpe, com pós-doutorado nas
grandes universidades do mundo, várias cabeças pensantes já se debruçaram sobre o sentimento a que chamamos
de saudade. Belas, profundas e tão diferentes entre si, as definições coincidem num ponto. Trata-se de um
sentimento de mão única. Saudade é o que você sente quando o outro, tão querido, está ausente. É algo que parte
sempre de você para o outro. Se também o outro sente a sua falta, vai lhe dizer: estou com saudade de você. O
sentido se inverte, mas não deixa de ser unilateral.
A grande novidade nos altos estudos sobre o tema vinha da frase da Luísa. Ali, a saudade é compartilhada.
Não estou com saudade de você. Estou de saudade com você. Estar com saudade pode ser uma coisa boa. Quer
dizer que você está vivo, que sente algo profundo por alguém. Agora, estar de saudade vai além disso, está no
campo do divino, do maravilhoso. Significa que, em algum lugar, existe uma pessoa que também pensa em você
(justamente a pessoa que você gostaria que estivesse ao seu lado). Significa ainda que você tem consciência de
que o sentimento é recíproco. No exato momento em que você sente a falta do outro, sabe que o outro também
sente a sua.
Por isso tome cuidado, é arriscado dizer que está de saudade com alguém. É preciso ter bala na agulha para
dizer uma coisa dessas. Vai que é só você que sente e o outro não está nem aí. Então, se você não tem certeza de
que é correspondido, melhor ficar com a forma tradicional mesmo. Manda ver um estou com saudade e tudo bem.
Se, no entanto, tiver certeza de que, do outro lado da linha, existe alguém que sente sua falta com a mesma
intensidade com que você sente a dele, fique à vontade para usar a expressão criada pela Luísa (ela já me garantiu
que não vai exigir direitos autorais). Encha o seu coração e diga, com firmeza: estou de saudade com você.
Estas e outras crônicas estão publicadas no livro de Flávio Carneiro: Histórias ao redor (Vitória: Editora
Cousa, 2020.)
6. A única alternativa em que a expressão destacada não indica ideia de tempo é a) ( ) “Fui fazer o meu trabalho e só à noite, no hotel, me dei conta da pérola que viajava escondida naquela brevíssima mensagem.” b) ( ) “Eu estava numa viagem de trabalho quando recebi pelo celular uma mensagem de voz gravada pela minha filha Luísa, na época com 2 anos.” c) ( ) Embora goste muito de falar, desta vez Luísa foi bem econômica com as palavras. d) ( ) Ali, a saudade é compartilhada