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Critério


Os náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdidos em alto-mar, tinham comido as últimas bolachas e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência. 

-- Mulheres primeiro -- propôs um cavalheiro.

A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Mas estava posta a questão: Que critério usar para decidir quem seria sacrificado primeiro para que os outros não morressem de fome?

-- Primeiro os mais velhos -- sugeriu um jovem.

Os mais velhos imediatamente se uniram num protesto. Falta de respeito! 

-- É mesmo -- disse um --, somos difíceis de mastigar. 

-- Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres? 

-- Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver -- disse um jovem. 

-- E vocês precisarão de nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra -- disse outro.

Então os mais gordos e apetitosos.

-- Injustiça! -- gritou um gordo. -- Temos mais calorias acumuladas, e, portanto, mais probabilidade de sobreviver de forma natural do que os outros.

-- Os mais magros?

-- Nem pensem nisso -- disse um magro, em nome dos demais. -- Somos pouco nutritivos. 

-- Os mais contemplativos e líricos?

-- E quem entreterá vocês com histórias e versos enquanto o salvamento não chega? -- perguntou um poeta. 

-- Os mais metafísicos?

-- Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá -- disse um metafísico, apontando para o alto -- e que pode se tornar vital, se nada mais der certo.

Era um dilema.

É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros de segunda e terceira classe, que ocupavam todo o resto da embarcação e não diziam nada. Até que um perdeu a paciência, e, já que a fome era grande, inquiriu:

-- Cumé? 

Recebeu olhares de censura da primeira classe. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco, também recebeu uma explicação. 

-- Estamos indecisos sobre que critério utilizar. 

-- Pois eu tenho um critério -- disse o passageiro de segunda. 

-- Qual é?

-- Primeiro os indecisos.

Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu:

-- Não vamos ideologizar a questão, pessoal! 

Em seguida, levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar.

-- Náufragas e náufragos -- começou. -- Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e ateus... É entre maioria e minoria. 

E, apontando para a primeira classe, gritou:

-- Vamos comer a minoria. 

Novo rebuliço. Protestos. revanchismo não! Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira não era primeiro em tudo? Pois seria a primeira no sacrifício. 

Não podiam comer toda a primeira classe, indiscutivelmente, no entanto. Ainda precisava haver critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico. 

E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de quem sabia que era o único indispensável a bordo. 

O fim desta história admonitória é que, com toda a agitação, o barco salva-vidas virou e todos, sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões, que, como se sabe, não têm nenhum critério. 


(Luís Fernando Veríssimo)

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